15 de março de 2018

Entre a vontade e a consciência


Recorrentemente, e cada vez com maior frequência, debatemos a possibilidade de acolhermos um cão ou um gato. Tanto eu como o pai, já tivemos cães e gatos (eu só tive um gato) quando éramos miúdos e estamos de acordo com o facto de que ter um animal de companhia é um mix de emoções e que despertam o lado bom de cada um de nós. Há uns anos tivemos uma gata, mas com a chegada de um bebé e perante o perfil agressivo do animal tomámos a decisão de oferecer a gata a uma amiga da família. Diga-se que a mudança fez maravilhas à gata, que passou de um apartamento a dominar um vasto quintal podendo libertar à vontade a sua energia e agressividade inatas.
Após eu ter jurado a pés juntos que jamais teria outro animal (porque fiquei com imensos remorsos), ultimamente tenho dado uma segunda oportunidade a essa minha vontade. As crianças beneficiam imenso da companhia de um animal, sobretudo se for um cão. Eu não sou uma "dog-person" mas gosto deles e tenho muita vontade de conviver mais de perto com um, no entanto, tenho algumas reservas...
Ter um cão, para mim, é quase como ter outro filho. São criaturas que dependem imenso das pessoas e se vivermos num apartamento a logística complica-se exponencialmente. Atenção que eu conheço variadíssimos casos de sucesso de cães de grande porte em apartamentos, mas para mim não dá. Mesmo grande ou pequeno, seria eu generosa e altruísta o suficiente para a rotina dos xixis e cocós? Eu bem vejo os meus vizinhos, pela meia-noite ou cedíssimo de manhã, à chuva, ao vento, com frio ou calor à espera do cocó. Sendo eu uma pessimista tenho uma triste tendência para ver primeiro os pontos negativos de qualquer decisão e à semelhança da questão das necessidades básicas fisiológicas, não poderia deixar de pensar na questão dos fins de semana que passamos fora, ou mesmo as férias. É certo que há soluções para tudo, levamos os animais connosco e fazemos figas para que os aceitem nos sítios onde vamos, ou então calha a "fava" à família próxima que fica a fazer babysitting... Ter um animal de companhia envolve também uma fatia do orçamento e certamente (também) por isso há em Portugal uma enorme e vergonhosa taxa de abandono animal. Jamais poderíamos adoptar um animal se equacionássemos em permanência os gastos veterinários e de alimentação, mas há certamente quem se esqueça desse pormenor quando se enamora por um cachorro ou gatinho que vê para dar.

Foram já algumas vezes que eu fui travada para não trazer um cão vadio para casa, vá-ri-as! Quando vejo um animal, nunca me lembro do copo meio vazio, das despesas, das prisões, pelo contrário, penso sempre no bem que faria essa convivência aos meus filhos. Não quão fantástico é sentirmo-nos amados por um animal irracional que vibra com a nossa presença mesmo que tenhamos virado costas há 5 minutos. Este amor à prova de bala é emocionante e com frequência me leva a vacilar nas minhas certezas... um dia creio que isto irá acontecer, mas não será já, infelizmente.

12 de março de 2018

Desfazer ou manter os kits de brinquedos? Eis a questão!

Eu tenho para mim que há dois tipos de pessoas no mundo: aquelas que mantém religiosamente os kits de brinquedos e aquelas que não querem saber e metem tudo na mesma caixa.
Para meu azar, eu enquadro-me no grupo dos que gostam de manter os kits separados. O kit do zoológico, o kit do quarto dos manos, o kit dos gorilas - isto no universo Playmobil! Nos legos a coisa também é mais ou menos assim, mas normalmente os kits que ficam juntos estão mesmo montados, nomeadamente carrinhos, helicópteros, casinhas e por aí fora. O que é que resulta desta organização? Resulta que isto ocupa horrores de espaço e eu começo a ficar nervosa.

A par das pessoas que gostam de manter os kits separados, há aquelas pessoas que mal vêm uma caixa quase vazia, só ficam felizes quando a virem no ecoponto, ora eu também sou esta pessoa!
Nos gavetões dos brinquedos dos meus filhos comecei a ter uma certa dificuldade em fecha-los porque havia demasiadas caixas (quase vazias) de kits de playmobis e o facto é que os miúdos nem sequer brincam muito com o Playmobil. Andei semanas a ganhar balanço, mas por fim, a minha vontade de organizar espaços cheios de nada venceu e comprei uma caixa grande e dei ordem às crianças que desmantelassem os kits, juntassem tudo e dobrassem as embalagens para seguirem para o papelão.

A primeira reação das crianças foi de horror: Não vamos desfazer os kits, mamã!! exclamaram os pequenos. Mas a decisão estava tomada e tive que ser firme. Seguimos então em frente e lentamente foi ver gorilas misturados com camas, palmeiras juntamente com cabras, guerreiros no meio de mergulhadores. Tudo na mesma caixa, tudo em alegre convívio, sem caixinhas nem aquela preocupação em verificar se não falta nada - uma libertação, foi o que foi.

Após a hesitação inicial qual foi o resultado desta mudança? O resultado foi os miúdos brincaram de uma forma muito mais livre e mais criativa com o playmobil. Embora o playmobil seja um brinquedo que eu considere bastante bom, já todos tivemos playmobis em pequenos, a verdade é que por ter kits tão estanques a brincadeira fica um pouco condicionada, o que é mau. Ao contrário do Lego, o Playmobil não é tão flexível nas suas combinações, não há kits "genéricos" por assim dizer e isso é um ponto menos positivo na hora de brincar livremente. Recordo-me de um vizinho que eu tive quando era miúda que tinha uma coleção muito grande dos cowboys, ele tinha imensa coisa, o forte, vários cavalos com índios, soldados, palheiros mas também tinha o navio pirata, mas numa prateleira à parte, ou seja, não combinava os kits embora os tivesse expostos no quarto, fiquei sempre com essa lembrança. Agora cá em casa é assim, acabaram-se as milhares de caixas, brinca-se (ainda) mais, está tudo mais arrumadinho e eu consegui passar para o lado das pessoas menos tolinhas :D

10 de março de 2018

Leitura de fevereiro - Viver com os Outros


Durante o mês de fevereiro tive a oportunidade de voltar a uma rotina que pratiquei durante muito tempo: ler no comboio. Ainda que o comboio circule ainda mais cheio do que antes, a verdade é que esta continua a ser uma boa ocasião para ler sem grandes perturbações.
A propósito deste artigo e depois este, achei que tinha de ler o livro "Viver com os Outros" de Isabel da Nóbrega. Gosto sempre de uma boa intriga e envolvendo figuras literárias a coisa melhora substancialmente quando falamos de José Saramago e a sua vida polémica. Se há quem teorize sobre a carga de influência que Isabel da Nóbrega teve na evolução de José Saramago enquanto escritor, há também que defenda que essa influência não passou de uma coincidência.

Quis então ler este livro para conhecer o estilo de Isabel da Nóbrega e não posso dizer que me desiludiu mas também não posso afirmar que me arrebatou.
A história passa-se numa única noite, um serão de verão no apartamento de Ana, onde um grupo de amigos vão conversando sobre a vida. Os temas vão passando das banalidades do dia-a-dia até atingirem maior profundidade pessoal e filosófica. Como vivemos com os outros, qual o nosso lugar no mundo, a burguesia, a liberdade da mulher portuguesa e os limites que o casamento impunha, ter ou não ter uma profissão e a independência que advinha de tal poder.
O livro é de 1964 (foi prémio Camilo Castelo Branco) e julgo que à época terá sido uma lufada de ar fresco porque todo o ambiente é descrito de forma descomplexada e sem rodeios, é efetivamente um conjunto de diálogos entre amigos uns concordantes outros discordantes mas em ambiente sereno e  educado; se fosse escrito hoje talvez disséssemos que não passa de um conjunto de lugares-comuns do quotidiano.

Ainda voltando a José Saramago, julgo que os livros que escreveu durante o relacionamento com Isabel da Nóbrega foram efetivamente os que mais gostei até até agora, nomeadamente O Ano da Morte de Ricardo Reis, O Memorial do Convento ou mesmo Levantado do Chão, mas daí a dizer que a sua escrita, tal como a conhecemos, é o resultado da influência de Isabel da Nóbrega tenho as minhas reservas pois (neste único livro que li, é certo) não consegui encontrar pontos comuns que me remetessem a Saramago... Não obstante, Viver com os Outros é um livro que recomendaria a leitura caso o encontrassem, pois o mesmo está esgotado no editor - o meu veio do OLX, confesso :)

4 de março de 2018

Vidas tristes

"Hora de jantar

Ninguém podia falar. O pai exigia silêncio. De olhos postos no televisor, comendo devagar, prestava atenção às notícias que a locutora ia apresentado. O jantar era sempre assim: o pai vendo o telejornal, os filhos comendo em silêncio, a mãe, em frenesim tardio, depois de um dia de trabalho, despachando o que houvesse a despachar para estar pronta à hora da telenovela. Ana estava bem avisada sobre a postura que devia ter durante a refeição: silêncio absoluto para não perturbar o pai e, se possível, se quisesse agradar-lhe, mostrar interesse nas notícias. Por vezes, distraía-se. Esquecida das ordens, falava com a irmã mais nova. Lúcia era habilidosa com as mãos. Para controlar a ansiedade que o silêncio imposto lhe causava, tinha o hábito de fazer dobragens com as folhas translúcidas dos guardanapos. À hora do jantar, saiam das suas mãos cravos, nenúfares, pequenas rosas.


- Que rosinha tão linda!
- Gostas?
- Ensina-me a fazer…
- Tu não és capaz, Ana!
- Sou sim!
- Tens sempre negativa a Trabalhos Manuais…
- Estúpida.
Riam-se. 

O pai não dizia nada quando via as filhas alegres, continuava a ver televisão, mas descaíam-lhe os cantos da boca, os olhos ficavam gelados. Carlos, o filho mais velho, chumbara já duas vezes no curso de Direito, era um desgraçado, nunca seria ninguém na vida, as raparigas, via-se bem, iam pelo mesmo caminho. Duas filhas, duas ignorantes que se deslumbravam com flores de papel em vez de se interessarem pelas notícias do mundo. A mãe, aflita, temendo que a desilusão do marido se transformasse em raiva, abria os olhos. “O vosso pai está a ver o telejornal!”, acabava por dizer. Lúcia logo esmagava a flor de papel na mão. Calava-se. Ana fingia não ouvir, mas, quando o pai por fim a mandava calar, desprezo na voz, calava-se também. Aquilo custava-lhe. Sentia então raiva, fazia por se controlar, não podia responder, a resposta poderia desencadear reacções violentas no pai. Ana, nesses instantes, assustava-se: pressentia que se tivesse ao seu alcance uma pedra, uma faca bem afiada, mataria o pai. Mexia com o garfo o arroz branco no prato. Não gostava de arroz branco, mas em casa, para além das batatas a acompanhar o peixe cozido, apenas se comia arroz, sempre branco, sempre cozido em água e sal. O pai só gostava de arroz branco. Observava os azulejos das paredes, a mãe, numa azáfama, de volta do fogão e do lava-loiças. Tudo era triste e desolador: o egoísmo do pai, a subserviência da mãe, a violência contida em cada gesto à hora de jantar.
Passados alguns anos, já Ana e Lúcia eram adolescentes, Carlos saíra de casa para viver num quarto alugado, o pai – talvez por sugestão da mãe – passou a jantar sozinho na sala. Depois de tomar banho, de robe e pijama, sentava-se na poltrona em frente da televisão. Cheirava bem, a sabonete e champô, estava limpo, tinha mãos bonitas, um cabelo espesso, muito preto. Ana sentia vontade de se sentar ao seu lado, mas não era capaz. O pai era um estranho, um homem que vivia na mais completa solidão. Antes de começar o telejornal, a mãe levava o tabuleiro à sala: um pano lavado, o arroz na quantidade exacta, uma costeleta frita, molho sobre o arroz, a acompanhar, um copo de vinho. Voltava depois à cozinha, onde, sentadas à mesa, Ana e Lúcia a esperavam para começar a jantar. Comiam em silêncio. Estavam habituadas ao silêncio. Tudo continuava a ser triste e desolador. Só o pai, concentrado nas notícias, sem ter ninguém a perturbá-lo, parecia agradado com a mudança. A sua felicidade era evidente: estava acompanhado pelo mundo e sua gente, mas livre da família."

Texto da Ana de Amsterdam