Música no Coração - baseada em factos verídicos, filmado na Áustria
A propósito de um momento nostálgico que tive noutro dia, escrevo agora pela sugestão de duas amigas leitoras, sobre a minha visão daquilo que ficou da época em que fomos emigrantes na Áustria.
Chegámos à Áustria era inverno e era noite, contam-nos os nossos pais que a primeira surpresa foi a neve que estava depositada no chão e que nós prontamente fomos investigar como se viéssemos de Marte. Eu tinha 6 anos, a minha irmã acabara de fazer 5 e o meu irmão tinha 3, viemos da terra do calor tropical, estagiámos durante uns meses em Lisboa e um belo dia aterrámos no centro da Europa.
Lembro-me da casa muito quente e da quantidade de neve que se via das janelas e que tudo aquilo não tinha nada a ver com o deixámos em Lisboa. Passado pouco tempo fomos para a escola e lembro-me de sermos conduzidos pelas professoras, percebíamos o que elas queriam mas não entendíamos nada. Fui para a minha sala e as meninas sentiram-se curiosas para saber o que eu tinha para lhes dizer e eu de bico calado. Isto deve ter-se repetido nos primeiros dias porque rapidamente comecei a interagir com os nativos loiros e o facto é que passados 3 meses de escola, eu e os meus irmãos falávamos alemão ao nível da perfeição que uma criança da nossa idade teria, pelo idioma não nos distinguiam.
A passagem para a escola primária foi normalíssima, eu tinha já 7 anos quando iniciei a primeira classe, tal como uma larga maioria dos meus colegas, tanto quanto sei, era incentivado que as crianças iniciassem o ensino primário com 7 anos sem terem conhecimentos de leitura ou escrita, não sei se isso hoje ainda se mantém. Apesar de já nos sentirmos perfeitamente integrados, nos anos que se seguiram havia sempre aquela coisa de sermos estrangeiros e de uma forma ou de outra eu sentia que tinha algo em comum com os turcos, checos e jugoslavos que também povoavam a minha turma. Mas enquanto esses colegas estrangeiros tinham imensos conterrâneos na escola, nós éramos realmente os únicos portugueses - a Áustria não era de todo um destino português.
A Áustria ensinou-me a estimar o que me rodeava, desde o material escolar, passado pelos brinquedos, não se podia mexer em nada, havia um grande convívio com a natureza onde alternávamos entre a montanha, os lagos, a neve e verões amenos. Tivemos acesso a vários países e desta forma pudemos ir a locais estimulantes como Veneza e Normandia, fizemos uma viagem de carro Áustria-Portugal e foi o máximo ver tantas paisagens diferentes. Mesmo sendo nós crianças vibrámos imenso com as histórias da II Guerra, a peste negra, castelos de encantar e muitas tradições do centro da Europa. A escola era algo que nos trazia imensa responsabilidade, éramos obrigados a ir sem os pais a pé em grupos de amigos para as aulas. Tínhamos tesouras de costureira para os trabalhos manuais, usávamos o martelo e pregos com grande naturalidade, os materiais de papelaria deveriam sobreviver até à 4a classe e os colegas dos anos mais avançados escreviam os recados para os colegas da 1a classe - nada de fotocópias! Os melhores alunos eram enaltecidos e os medíocres eram apontados como tal com o objetivo de os fazer seguir os bons exemplos da turma. (Só frequentei até à 3a classe, depois mudámos novamente).
Durante o tempo que estivemos na Áustria falámos sempre em português em casa, mas entre irmãos íamos alternando entre o português e o alemão.
Ao contrário de nós, filhos e pai, que estávamos totalmente integrados, a nossa mãe foi provavelmente a que enfrentou o maior desafio pois deixou de trabalhar em enfermagem e teve de aprender alemão para poder comunicar com professores, pediatras, lojistas, vizinhos e por aí fora. Acho que isso foi o mais difícil mas a minha mãe saiu-se muito bem e só prova que não há adversidades perante a inevitabilidade do cenário que vivemos. É a vida.
Neste momento vejo amigos emigrarem, e recordo-me bastante daquela época mas não me imagino a deixar Portugal... já tive a minha conta de estrangeiro e quero que os meus filhos saibam o que é ter primos e avós durante a infância. Eu não tive nada disso, mas na altura não senti falta. Hoje não tenho amigos de infância, não posso dizer à minha filha "olha foi aqui que a mãe andou na escola primária" e isso é estranho, tenho raízes espalhadas por vários locais e muitas escolas, tenho muitas memórias de acontecimentos remotos, como o desastre nunclear de Chernobyl e as restrições que tivemos por causa disso (recordo-me de traduzir as notícias da tv para os nossos pais). A emigração podia ter corrido mal, mas no nosso caso foi maioritariamente positiva e acho que alguém que vá entrar numa aventura destas com os filhos, não deve ter medo mas nunca mais se volta ao que era. De um modo geral a emigração muda-nos para sempre, não somos de lá e quando regressamos não somos de cá, temos sotaque em todo o lado, há hábitos novos que adquirimos e aprendemos a aceitar que as pessoas são realmente muito influenciadas pelo meio em que habitam.
8 comentários:
Apesar da minha experiência ser diferente - ja trabalhei aqui e os meus filhos nasceram franceses -identifico-me bastante com a tua conclusão, não sou de lado nenhum, tenho sotaque em todo o lado, mas, como diria Pessoa, sou uma cidadã do mundo. E isto agrada-me.
Percebo quando dizes que ja tiveste a tua dose de emigração, mas não penso da mesma maneira, conto icentivar os meus filhos a viverem noutros paises (quano forem maiores), nem que seja no minimo, num programa tipo Erasmus. Tudo o que se ganha compensa largamente o que se perde.
Gostei msmo muito deste texto (não sabia que fazias discos pedidos). Obrigada.
Adorei o teu relato.
Acho que vocês ganharam uma bagagem de experiências única. Só o facto de dominarem uma língua estrangeira é já uma mais valia enorme (em 3 meses?!).
Esquece isso dos amigos de infância. Salvo raras excepções, a maioria de nós, que sempre viveu cá, convive em adulto com amigos de faculdade, quando muito da secundária.
Imagino que tudo isto tenha feito de vocês o que são, vos tenha unido.
Adorei o texto, muito obrigada. A minha irmã vai emigrar para o mês que vem e vou recomendar este texto.
Belo texto!
Com tanta mudança na minha vida, sinto-me uma tartaruga.
Excelente: "não somos de lá e quando regressamos não somos de cá"
*
obrigada!!
queiram, por favor, ler este blog http://cheirinhoaeter.blogspot.pt/
é de um enfermeiro que recentemente emigrou para a suíça. é muito bom e esclarecedor.
:)
Adorei o teu relato. Incrível como um episódio desta dimensão modifica uma pessoa para toda a vida. É curioso porque me identifico com muitas coisas neste texto...
Qdo eu cheguei em Lisboa, há 8 anos, achei tudo maravilhoso porque na minha cabeça era 1 ano sabático e só. Mas a vida tinha outros planos para mim e a verdade é que estou aqui há quase uma década. Casei, a minha filha nasceu aqui e agora olho para trás e penso como esta experiência me modificou. Já amei e odiei viver aqui, mas acredito que os ganhos são maiores que as perdas...sinto falta dos meus amigos, da minha família, da minha gente...sinto falta das referências da minha vida, da cidade louca de são paulo, da alegria do brasileiro. Mas é curioso que tb perdi muitas coisas de lá, já não as reconheço. Não sei como vai ser daqui uns anos...talvez voltar. mas eqto isso vou aproveitando ao máximo. Desejo que a Clara, qdo for a hora, tb tenha uma experiência assim, de viver em outro país...acho enriquecedor, único.
Exemplo disto é ler o teu texto, fantástico! obg.
beijinhos grandes
estou aqui pela primeira vez mas adorei este seu texto. É uma visão da emigração que nem sempre nos lembramos que ela existe.
Lindo Sofia!!!
AMEI! Eu não emigrei, mas imigrei com 12 anos. Do Porto para Cascais. Claro que não é a mesma coisa, mas também sei o que é não ter amigos de infância ou viver longe dos primos e avós.
Vivi 6 meses em Erasmus em Bruxelas e não me importava nada de ter ficado lá. Adaptava-me facilmente a isso! :))
um beijo grande e obrigada pela partilha!
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